Sebenta do Superior
sábado, maio 15, 2004
 
Uma opinião que se deve ter em conta

Santana Castilho, colunista do Público e professor do Ensino Superior aborda na sua crónica de hoje a investigação científica em Portugal e o novo modelo de financiamento do sistema preconizado Maria da Graça Carvalho. A ler, quer se seja docente investigador ou um mero aluno.

"Uma Graça e Uma Desgraça
Por SANTANA CASTILHO

A ministra da Ciência e do Ensino Superior estava preocupada com o estado da investigação científica em Portugal. Puxou pela cabeça e decidiu modificar o modelo de financiamento do sistema e apelar aos lusitanos cérebros, dispersos pelo mundo, para que regressem ao torrão pátrio. Quando a li, soltei uma gargalhada. O que propõe é uma graça. Vejamos porquê.

1. A excelência importa quando é consequência. A excelência não importa quando é excrescência. É desejável como resultado de um trabalho sério, coerente e continuadamente orientado para ela. Não tem relevância quando assume a forma de uma injecção artificial, num ambiente de penúria. Dito de outro modo, é ridículo falar dela num cenário de carências como o nosso. O que qualquer cientista digno desse nome quer são equipamentos modernos e garantia da sua substituição sempre que os avanços tecnológicos o justifiquem; financiamentos adequados e garantia da respectiva manutenção numa lógica de projecto, que não numa contingência política, anual, de Orçamento do Estado; estrutura de carreira digna e fomentadora de equipas estáveis; regras de gestão que o dispensem dos "processos" e o libertem para os "projectos". Isto não existe e isto é indispensável. Para aqui chegar não é preciso ser-se político de rasgo nem cientista. Basta simples bom senso.

2. Ao bom senso invocado na equação do problema é preciso somar a vontade política para a sua resolução. Infelizmente, tão-pouco existe. Quando a União Europeia se alarmou em Lisboa com a distância que a separava dos Estados Unidos da América, relativamente ao investimento em investigação, os países comprometeram-se a gastar em ciência e tecnologia, até 2010, três por cento do PIB. A média da Europa vai em 1,8 por cento. Mas nós nem chegamos a metade disso. Por enquanto, preferimos investir em dez estádios de futebol. É por isso que muitos portugueses excelentes servem o desenvolvimento doutros países, que lhes proporcionam condições de trabalho.

3. Tentar seduzir esses portugueses com complementos de financiamento, jogados em cima do quadro anterior, é obviamente ineficaz. Mas fazê-lo definindo que a qualidade de excelente advém de se terem publicado 100 artigos com 200 citações ou 50 com 100 citações e 10 doutoramentos, orientados e concluídos, é simplesmente risível.

É lamentável que a ministra confunda excelência com persistência. Os cientistas excelentes são os que conduzem investigações que produzem resultados de monta. Vivem para investigar e para encontrar respostas com impacto. Só escrevem quando têm coisas de peso para transmitir. Escrevem menos e são, obviamente, muito citados. Os outros escrevem mais mas averbam escasso número de citações por artigo. Escrevem e... "vão investigando".

Quem promover uma investigação sobre a evolução da temperatura do lagarto das Berlengas, ainda que criteriosa e cientificamente irrepreensível, quantas citações obterá por cada artigo que lhe descreva os resultados? E se se tratar de uma investigação longa, da responsabilidade de um "cientista" sénior, bem relacionado com os comités de apreciação dos artigos, persistente em escrever, não poderá publicar vários, a esse propósito, numa das tais revistas internacionais referenciadas pelo ISI (Institute for Scientific Information)?

Desconhece a senhora ministra que uma das queixas apresentadas pelos jovens cientistas diz respeito a muito corporativismo instalado, responsável pela eventual publicação de trabalhos em função dos autores, que não em função dos conteúdos que, muitas vezes, nem serão analisados? Na longa lista das publicações referenciadas pelo ISI, será indiferente o local onde se publica? Desconhece a senhora ministra que umas têm enorme prestígio e outras quase não têm leitores? É indiferente publicar ali ou aqui? Desconhece a senhora ministra que a comunidade científica avalia a relevância do investigador pelo número de citações por artigo, que não pelo número de artigos que ele consegue publicar? E quanto aos doutoramentos? Considera a senhora ministra que é melhor orientar dez na Universidade Eduardo Mondlane que um no MIT ou dois em Harvard? Que estranha aritmética esta, quando aplicada à ciência e aos cientistas!...

A senhora ministra da Ciência e do Ensino Superior é cientista e é professora universitária. Não desconhece certamente as respostas às perguntas que, só por retórica, lhe acabo de formular. Mas é agora, também, política. E porque aceitou tal condição, não pode ignorar os elementos básicos de um processo de tomada de decisão. Um qualquer diagrama de etapas deste processo, se tivesse sido usado, confrontá-la-ia, inexoravelmente, com a pergunta, condicionante total da medida que escolheu: que pode acontecer se fizer isto? Que cenários se podem apresentar? Esta etapa, se tivesse sido admitida, teria uma resposta: Nada. O que se pretende mudar permanecerá igual com a medida.

Os cientistas de gabarito não serão atraídos pela miragem de financiamentos complementares. Esses já têm financiamentos. E muitos não preencheriam, sequer, as condições da ministra. Os jovens cientistas, mesmo que de grande potencial, não preenchem as condições exigidas. Uns e outros, para se moverem, querem condições de trabalho. Bacalhau e fado não chegam.

Mas a ministra conseguiu, em minha análise, desrespeitar, intelectualmente, os investigadores sérios que resistem e teimam em fazer, no seu país, aquilo de que o país tanto carece. Foi pena!"

Santana Castilho, Professor do ensino superior, in jornal Público de 15 de Maio

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